Desde as primeiras batidas nas ruas até os grandes palcos e estúdios, o rap sempre foi sobre contar histórias — com força, rima e autenticidade. Mas essa tradição, marcada por letras escritas com cuidado e ensaio prévio, está sendo desafiada por uma nova geração rappers que criam música de forma diferente: no improviso, direto no microfone, sem papel ou caneta. Essa técnica é chamada de “punch-in”.
Popularizada por nomes internacionais como Jay-Z, Doechii, Lil Wayne e Playboi Carti, o “punch-in” nada mais é do que freestyle com estrutura. O artista entra no estúdio, escuta a batida e grava trechos curtos, improvisados, muitas vezes até balbuciando frases que depois vão sendo moldadas. Com a liberdade que a tecnologia digital trouxe, é possível repetir quantas vezes quiser, explorando diferentes ideias em cima da mesma base.
No Brasil, rappers como Major RD, MC Cabelinho e Brocasito vêm adotando esse estilo de criação — e, mais do que uma moda, para eles, é um caminho criativo natural. Major RD conta que nunca se sentiu à vontade escrevendo letras com antecedência. “Quando chegava na hora de gravar, eu começava a rimar na hora”, comenta. Já Brocasito reforça que o punch-in permite que a música “flua melhor”, até mesmo com o uso do celular como estúdio portátil.
A técnica, no entanto, não é unanimidade. Enquanto alguns veem no punch-in um símbolo da liberdade artística, outros — principalmente os mais antigos — criticam a falta de preparo e profundidade nas letras. Para a cantora Negra Li, a técnica é válida, mas exige responsabilidade: “Tem letras que precisam de estudo, ainda mais quando tratam de temas históricos ou sociais.”
A evolução do estúdio
Nos anos 1990, Jay-Z já usava o punch-in para gravar seus versos com base em experiências de vida. Seu álbum Magna Carta, por exemplo, foi gravado quase todo no improviso, como relatado por Travis Scott, que participou da produção. Naquela época, isso era possível apenas para artistas com acesso a bons estúdios. Hoje, com softwares acessíveis e produção caseira, qualquer jovem com um notebook ou celular pode gravar uma faixa inteira em casa.
Foi essa democratização da produção musical que deu espaço ao movimento do trap e ao surgimento dos SoundCloud rappers — artistas independentes que subiam suas faixas diretamente em plataformas digitais, como Chief Keef, XXXTentacion, Juice WRLD e Young Thug.
Rap brasileiro entre tradição e inovação
No Brasil, o rap sempre teve uma pegada social muito forte. Grupos como Racionais MC’s, Facção Central, Thaíde e GOG construíram letras potentes e narrativas profundas — escritas com antecedência, ensaiadas e muitas vezes inspiradas nas dificuldades de acesso aos estúdios profissionais.
Mas com o avanço da tecnologia, essa realidade mudou. Batalhas de rima ao vivo se popularizaram, plataformas como YouTube e Spotify deram visibilidade à nova geração, e o “punch-in” passou a ser cada vez mais comum. Rappers como Emicida, embora ainda escrevam, adotam métodos híbridos: anotações soltas, ideias improvisadas no estúdio e criação mais espontânea.
Major RD vê nessa nova geração de ouvintes uma virada importante. “Tem uma galera nova que não quer mais ouvir música de crítica social. Eles se identificam com outro tipo de rima, que fala mais de lifestyle”, afirma. Ele também destaca que, mesmo em músicas mais descontraídas, costuma inserir críticas sutis sobre política e realidade social.
Tendência ou revolução?
A técnica do punch-in não veio para substituir a escrita tradicional, mas para acrescentar uma nova possibilidade criativa ao rap. É, ao mesmo tempo, fruto da evolução tecnológica e do perfil de uma nova geração de artistas, que cresceu com internet, software de edição e autonomia para criar.
No fim das contas, o que continua valendo — seja com punch-in ou com letras escritas à mão — é a potência da mensagem e a conexão com quem ouve. Como diz Negra Li: “É melhor estar rimando e fazendo dinheiro com arte do que envolvido em coisa errada. Não vou criticar quem está vencendo com o talento que tem.”